terça-feira, 2 de novembro de 2010

...nesse último mês.

" (...)e perguntava a Deus, sem medo, se realmente acreditava que as pessoas eram feitas de ferro para suportar tantas penas e mortificações (...)"*


Naqueles dias a brisa invadia a casa com uma intensidade sem igual. Todos os cantos eram inundados pelo cheiro das árvores que existiam do outro lado do muro. As azaléias na janela ficaram num estado de timidez no começo, mas restabeleceram-se com o passar dos dias.

Ela tinha os passos curtos e contínuos que davam a impressão de estar em todos os cômodos ao mesmo tempo. Não houve espaço para almofadas de teias de aranha nas quinas dos tetos, nem proliferação de cupins ou acumulo de pó nos móveis. Todos os dias eram sábado. Como se o tempo estivesse congelado...só como, mas não estava. O barulho do relógio que fica na sala lembrava constantemente com seu tic-tac, que ela nunca percebeu ser tão alto, que os ponteiros não param.

As marcas de descuido sobre a tinta branca que cansava os olhos, já tinham o aspecto de tatuagem da casa. O lugar onde respingou café quando a xícara caiu, o outro que tinha um risco de móvel arrastado, ou a marca da água que escorre pela janela, todas as vezes que chove forte. Como um caminho que é feito todos os dias no mesmo horário, e é conhecido tanto os buracos das ruas, como as pessoas que estarão, assim era todos os detalhes da casa. O chão da área de serviço tinha uma marca amarelada, da água que escorria do canteiro de cebolinhas e salsinhas. Precisava de escova e sabão. Mas ficou para depois.

A suspeita do envelhecimento era todos os dias confirmada pelo espelho, e pelos fios de cabelo que preferia acreditar brancos e não loiros. E a certeza de ter perdido algo importante pela casa, e não saber onde estava, era tão forte e triste que causava uma dor física.

O barulho das folhas das árvores do outro lado do muro era tão tranquilizante. O tamborete branco feito de mesinha para o telefone e o tamborete de madeira, com um lenço lilás, feito de mesinha para os livros foram recortados de um poema da Adélia Prado. Os travesseiros e almofadas (não as de teias de aranha) sobre o lençol delicado faziam do quarto de dormir um lugar realmente de repouso. Nem a chuva de insetos que certa noite invadiu a casa quebrou a rotina estabelecida. E sempre haveria de lembra o que Úrsula dissera: "o tempo estava dando voltas num círculo vicioso."* E todas as noites os livros ganham voz e braços e fazem um cafuné até que ela durma.


(*) frases retiradas de Cem Anos de Solidão - GGM.

Desenho retirado do site: Kurt Halsey - http://www.kurthalsey.com/