quarta-feira, 27 de abril de 2022

PapelãO



Então a gente vai encaixotando o que ficou, aos poucos, às lágrimas... Chinelos, livros e camisetas... Uma história dentro do papelão. Certamente que o tempo e a poeira acionarão o alarme para limpar as prateleiras do escritório e uma carta, propositalmente guardada entre livros que então faziam sentido, cairá no chão. As mãos irão tremer e reler cada palavra vai fazer sangrar. Descobriremos que o exame do que devia ser guardado, queimado... quase esquecido, foi falho.

Mas antes mesmo da carta cortar os curativos, num gesto de fantasioso controle é removida a foto que aparece quando a pessoa ligava, mesmo porque a gente sabe, nega da boca pra fora mas sabe, que essa pessoa não vai mais ligar.

Repetimos em pensamento, em sussurros, aos berros, que amanhã vai doer menos e menos, uma progressão decrescente de dor, e mentindo esse mantra como consolo, contamos as horas, os cigarros, os cafés. Contamos as tardes dos domingos que agora estão vestidos de um novo tipo de solidão.

Tentamos transformar em ponto final as reticências que pairam no ar, sabendo que logo ali, após a porta que ficou aberta, estão os mais cruéis primeiros: o primeiro Natal, o primeiro Réveillon, a primeira conquista que não será compartilhada, a primeira banda de rock descoberta, o primeiro livro incrível que alguém indicou. Esses primeiros, com seus dentes amarelados de nicotina, desalinhados pelos socos, irão avançar em nosso pescoço. 

Então a gente vai encaixotando o que restou, aos poucos, à seca ... Cacos de sentimento, sobras de planos e sonhos. Um amor dentro do papelão.