sexta-feira, 3 de junho de 2022

...vazioS

... alguns vazios não podem ser preenchidos. penso neles como machucados, que param de sangrar, depois param de doer, criam uma casca e, ao passar do tempo, tornam-se cicatrizes. isso, são vazios cicatrizes. podemos até arriscar uma "auto mentira", executando uma tatuagem sobre eles, mas eles estarão lá, por baixo do rabiscado.

... e uma nova analogia surge nessa minha divagação: esses vazios cicatrizes são como a costura de uma colcha de retalhos. nossos muitos pedaços unidos por essas linhas disformes que percorrem todo nosso corpo, nossa alma. 

... a tarde dessa sexta-feira, que começou ensolarada, se fez cinza. até as plantas do desconexo jardim estão apagadas, como se ao final de suas forças para sustentação nos vasos embaralhados. talvez, quando for noite e eu estiver fumando e olhando para lugar nenhum, cante para elas, aquelas canções que acreditei que seriam parte de uma boa história.

... curioso como eu, em certa época, contei com tanta vibração e brilho nos olhos, sobre os encontros, desencontros e reencontros. cheguei a narrar a mágica do universo em unir pessoas, acreditei em predestinação. construí planos, fundados nos sonhos que costurei por muito tempo sozinha. Eu ainda estou aqui, mas já não tenho mais os planos, durante o caminho fui abandonando sonho por sonho, junto com outras partes de mim e hoje, nessa tarde cinzenta, percebo a dimensão do vazio que ficou... pois até as lembranças eu não consigo deixar registradas, por não saber o que é real e o que não é.

... eu quis contar que gravei no metal da minha pele o seu desenho, por alguns dias achei que teria a chance de mostrar ... agora sei que não e os dias arrastaram e não há mais o que dizer.

... a tarde dessa sexta-feira, que começou ensolarada, se fez cinza ... logo será noite... logo fará frio ... e outro dia vai chegar e ir embora e eu ainda estou aqui. 


... alguns vazios não podem ser preenchidos e vou conviver com eles, juntamente com as flores apagadas, os copos pelas metade, os cigarros amassados e meus olhos de rubi. serão combustíveis para o aprendizado de que não se pode ter respostas para todos os questionamentos, nem se deve. gritar para conseguir os porquês não faz com eles apareçam. chorar alivia um pouco e esvazia mais e mais. e eu ainda estou aqui. e eu tenho pela frente essa encruzilhada: continuar com versões irreais ou aceitar que o vazio seja de vez tudo o que pode ser visto dentro de mim.


quarta-feira, 27 de abril de 2022

PapelãO



Então a gente vai encaixotando o que ficou, aos poucos, às lágrimas... Chinelos, livros e camisetas... Uma história dentro do papelão. Certamente que o tempo e a poeira acionarão o alarme para limpar as prateleiras do escritório e uma carta, propositalmente guardada entre livros que então faziam sentido, cairá no chão. As mãos irão tremer e reler cada palavra vai fazer sangrar. Descobriremos que o exame do que devia ser guardado, queimado... quase esquecido, foi falho.

Mas antes mesmo da carta cortar os curativos, num gesto de fantasioso controle é removida a foto que aparece quando a pessoa ligava, mesmo porque a gente sabe, nega da boca pra fora mas sabe, que essa pessoa não vai mais ligar.

Repetimos em pensamento, em sussurros, aos berros, que amanhã vai doer menos e menos, uma progressão decrescente de dor, e mentindo esse mantra como consolo, contamos as horas, os cigarros, os cafés. Contamos as tardes dos domingos que agora estão vestidos de um novo tipo de solidão.

Tentamos transformar em ponto final as reticências que pairam no ar, sabendo que logo ali, após a porta que ficou aberta, estão os mais cruéis primeiros: o primeiro Natal, o primeiro Réveillon, a primeira conquista que não será compartilhada, a primeira banda de rock descoberta, o primeiro livro incrível que alguém indicou. Esses primeiros, com seus dentes amarelados de nicotina, desalinhados pelos socos, irão avançar em nosso pescoço. 

Então a gente vai encaixotando o que restou, aos poucos, à seca ... Cacos de sentimento, sobras de planos e sonhos. Um amor dentro do papelão.

segunda-feira, 14 de março de 2022

DelicadezaS

 ... não estão conseguindo limpar a sujeira há muito entranhada nas ruas, casas, veículos, pessoas. Profissionais de limpeza urbana, diaristas, mecânicos, médicos e esteticistas usam verdadeiros arsenais e a sujeita continua instalada, sempre exalando o absurdo da atualidade, derrubando máscaras e desafiando a aspiração ao bom e ao belo.


Diante desse cenário a DelicadezA, cada vez mais tímida, em um desuso esmagador, vestiu-se com a melhor couraça que pode encontrar e refugiou-se da melhor forma que conseguiu, mas não tão distante como gostaria ... couraças são como mágoa ... difícil de serem carregadas, pesam mais a cada passo. Tem sido difícil comer, o alimento é escasso, raro encontrar doçura, suavidade, cortesia... a DelicadezA habita impercebível em gavetas, prateleiras, brinquedos de pelúcia esquecidos no fundo dos armários, nas esquinas, jornais e anúncios de televisão, esmaecendo seu brasão.

Mas ela ainda sobrevive ... vez ou outra encontra quem se delicia com minutos olhando para o céu, quem sorri com boas notícias ou chora dividindo a dor com o outro. Seres que possuem os olhos transbordantes de sentimento, e se recusam a deixar que a sujeira vire uma segunda pele. Quem suspira com o vento no rosto, tem livros e músicas espalhados pelo lar, pelo caminho. A DelicadezA sobrevive nos pequenos gestos, no pão com manteiga, na foto emoldurada, no cheiro do travesseiro numa manhã de sol, na fruta amadurecida no quintal.

A DelicadezA sobrevive, e quem a cultiva espera a era em que será tão corrente quanto a sujeira que hoje a esmaga, pois bem sabem ser utópico um mundo completamente liberto da bestialidade.