domingo, 21 de março de 2010

Here With Me

Não gostava de filas. E filas de banco, no final de uma tarde de verão, eram para ela como pecado. Enquanto esperava para ser atendida fez vários jogos mentais com palavras, listando palavrões que sabia. Divertia-se. Um outro jogo para ela eram suas "palavras terapêuticas". O que poderia ser mais engraçado do que dizer nhoc? Dizer nhoc nhoc. Soltava gargalhadas, atraindo a curiosidade dos demais. Faltavam poucas pessoas agora, quando o senhor de cabelos estranhos grita que houve uma pane nos computadores. Sem nem pensar em entender o que significava aquele recado ou questionar qual seria o tempo médio de espera, nem saber coisa alguma, virou as costas, soltou um reconfortante puta que o pariu, e saiu do banco. Pensou sem culpa alguma: "que foda-se o banco e a porra dos pagamentos".

Andou por vários quarteirões e entrou num Café. Era um lugar conhecido, com um cheiro bom, um bom que vai além de café, cheirava aconchego, manhã de chuva, cheirava vontade de ficar quieta, assistindo o tempo passar. E tão logo colocou os pés ali, lembrou-se de uma tarde em que ficou horas olhando para o teto de seu quarto, esperando o tempo agir e fazê-la crescer alguns centímetros. Lembrou de tardes andando pelas ruas do bairro, sem motivo aparente. Foi entrar ali e sentir uma solidão companheira de vez em sempre.

Pediu um expresso. Com a boca cheia de vontade vasculhou a bolsa e lembrou que já tinha duas semanas que não fumava. Sorriu então e pediu ao atendente quem trouxesse cigarros e outro expresso em quinze minutos: "nem mais, nem menos, por favor, em quinze minutos". De acordo com seu pensamento nada linear, era o tempo que estaria com vontade de mais um. O rapaz bem treinado sorriu, virou e pensou: "louca"

- Nossa, estou agindo como louca...
E entre eles fez-se nesse exato momento uma boa sintonia.
Sentada próximo à janela, ficou observando as pessoas e suas peculiaridades, sem perceber que também era observada pelo homem da mesa ao lado.
Virou-se e foi um choque, daqueles olhos vivos e grandes em cima dela. Suas bochechas arderam quando ele levantou, puxou a cadeira e pediu para acompanhá-la naquele expresso que chegaria em 15 minutos e cigarros.
- Sabia que tão logo o atendente virou chamou-a de louca?
- Eu imaginei. Mas não é por loucura, e sim pelo costume de não ser costumeira. Consegue me entender?
- Perfeitamente, e essa diferença em você que chamou minha atenção. Essa sua diferença para mim é como um ímã de neodímio. Isso - um pequeno silêncio - você é como um ímã de neodímio.
Então, muito antes do tempo esperado, reinou na mesa um silêncio escandaloso. Não foram 15 minutos de espera pelos cafés e cigarros. Foram 15 dias de chuva forte. 15 meses pela vaga de emprego, 15 horas de dor de ouvido. 15 segundos de sexo bom. Foi tempo demais para esperar. Tempo de menos para entender o que era tudo aquilo.
Muitos anos depois, quando herdasse a poltrona com a colcha de retalhos, e soubesse fazer crochê com os dias, lembraria daquela tarde, e teria os olhos tão sussurantes que todos pensariam, erroneamente, que era efeito de sua bagagem.
Quatro expressos, dois cappuccinos, 16 cigarros, muitas frases soltas, risadas e ela dá seu veredicto:
- Pode ser arte para você, para aquele cara com expressão de filósofo, para o mundo. Para mim foi um cara "fumado", sem mulher ou outra forma de extravasar sua libido que fez uma baixota torta, com as mãos para o céu. Era ele que queria gritar socorro ao mundo e por se ver tão "quadrado" (risadas do trocadilho), fez essa merda.
Ele nem quis mais falar de arte, muito menos sobre cubismo. Afastou-se por alguns minutos e voltou informando que a conta estava paga.
- Vamos agora!
Ela nunca esteve tão certa, tão segura. Nem sentiu suas pupilas dilatadas. Saíram como um casal que sai de uma terapia, de uma sessão romântica de cinema, ou de um quarto de motel. Ele não vacilou em segurar firme e carinhosamente a mão dela. Nem ela em sorrir com aceitação.
Pararam próximo de uma banca. Ela pediu 1 minuto para comprar cigarros. Enquanto procurava o dinheiro no fundo da bolsa pensava no quanto gostou de sentir sua mão quente (devido a mão dele) e, quando se virou para oferecer uma revista, viu o mesmo teto do seu quarto de menina, descobriu que não só não crescera mais nenhum centímetro, como agora tinha o calor das tardes na mão e nada mais o para fazer.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Beijinho Doce

O dia tinha o cheiro inconfundível de sábado. A luz do sol invadia a casa, fazendo as paredes brancas refletirem um brilho gostoso no chão de madeira. O vento que soprava fazia as plantas da varanda balançarem suavemente, e as flores completavam o perfume: umas brancas, outras roxas. Num canto da sala reinava uma antiga vitrola de madeira, presente do avô no dia de nascimento da menina. Agora a vitrola era mais que um móvel, era parte fundamental da casa, praticamente um membro da família. Seu avô tinha a intenção que ela sentisse o prazer de escutar o chiado dos discos de vinil. Do outro lado da sala a avô sentada numa poltrona, tecendo crochê, com uma colcha de retalhos em cima das pernas.

que beijinho doce
que ela tem
depois que beijei ela
nunca mais beijei ninguém

A menina, agora crescida, estava parada na porta assistindo a cena. Quando criança sempre que entrava correndo da sala, seja para ver televisão, ou chegando de brincadeiras na rua, olhava e via um entulho, achava aquilo uma mesa fina e sem graça. Hoje não. Tinha nos olhos quando ali entrava um gosto bom de amor. Sentia uma paixão que só a idade permite sentir. Sentou aos pés da avó.

que beijinho doce
que ela tem
depois que beijei ela
nunca mais beijei ninguém

Fechou os olhos e deixou que o cheiro de bolo, vindo lá da cozinha, se misturasse com as flores da varanda: umas roxas, outras brancas. Teve a certeza que, quando chegasse sua vez de sentar na poltrona e fazer crochê, aquele mesmo cheiro inundaria seu coração, e se chorasse, seria de felicidade, que aquele sábado seria mais uma tatuagem em sua alma.

domingo, 7 de março de 2010

gOOD fRIDAy

Seus olhos de “amarela” completavam o décimo terceiro dia sem dormir, e o tom rubi deles vinha tanto da luz da lâmpada fluorescente usada para iluminar as miúdas letras do livro como de sua sensação de vácuo na alma. Sua insônia era algo que fortalecia o seu sentimento de TPM eterna. Um humor ácido e intragável, uma postura anti-social inigualável. Um não bem-querer por toda e qualquer coisa que tivesse a cor laranja, lembrasse o sol. A única pessoa de seus poucos contatos, o dono da loja de conveniência do posto de gasolina próximo de sua casa, gostava disso, lucrava com isso. Os atendentes sentiam um grande mal estar só de olhar aquela pessoa irritante entrando, quase a suplicar outro pacote de Marlboros. Ninguém mais ousava falar nada após a cena em que a simpática atendente que disse talvez a nicotina e a cafeína as causas das noites não – mal dormidas. Um ou outro chocolate meio amargo (e poderia ser outro sabor) fazia parte de suas compras.
Eram dias estranhos, entediantes, embotados, com teclas do controle remoto desbotando. Dias que foram completamente alterados com uma rádio sintonizada por acaso. Um som antigo que despertou um sentimento totalmente novo, um sentimento de “eu poderia ir, eu poderia dançar e tomar um uísque e depois voltar, talvez dormisse, ou talvez nem ligasse para o depois”. Despertado o sentimento de poder ser una novamente. Uma nova possibilidade de comportamento. E se ela tentasse, somente tentasse colocar seus tênis All Star marrons, sua bolsa pseudo-moderna, uma camiseta, calças e make-up noturno.
Um banho demorado, com cada parte de sua pele sentindo a bucha vegetal encharcada de sabonete, água morna e shampoo nos cabelos. O frio da torneira do chuveiro a impulsionava para as ruas. Como preparando-se para uma cerimônia passou hidratante pelo corpo, permitindo-se excitar com o toque de suas mãos. Roupas, tênis, secador, para os olhos: delineador e rímel e um pouco de sombra preta. Para o rosto base e blush, finalizando com gloss. Brincos e bottons na bolsa, que estava equipada com toda e qualquer coisa que por ventura fosse necessária.
As chaves funcionaram o carro. Pensou que os dias de garagem obrigariam um pedido de socorro ao vizinho devido algum problema na bateria, mas não. O ronco do motor cansado era tranqüilizante e fortalecedor. Faróis altos, som com músicas aleatórias e os pneus deslizaram pela irregular camada de asfalto.
O brilho vindo dos postes, letreiros de cores duvidosas e semáforos. Tons de amarelo e vermelho brilhando em outros veículos, o hodômetro mudava de dígitos como o relógio de seu pulso – uma estranha e saborosa pulsação.
A dúvida de sempre: e para onde aquelas pessoas estariam indo? De onde vindo? Teriam deixado em casa alguém para quem voltar? Sentia o vento que entrava pela janela do carro como uma carícia, e por enquanto aguardava o sinal naquela avenida abarrotada pensou em voltar. As buzinas ensurdecedoras fizeram que, mecanicamente, continuasse.
Facilmente achou uma vaga em frente ao único lugar que conhecia que poderia dançar por horas e horas e se sentir em casa – um pub tipicamente inferninho. Interpretou como um sinal santo de aprovação de sua atitude.
- Droga!!! Ainda falta mais de 30 minutos para abrir o bar!
Resolveu esperar num outro bar qualquer. Não faria diferença. Sentou num canto, iluminada por olhares de casais jovens e preconceituosos e quarentões sedentos por um par de coxas. Pediu uma bebida, cinzeiro e deliciou-se com o efeito da fumaça que escondia seu rosto. E ali ficou por uns bons 4 cigarros. Levantou-se, pagou e alimentou-se de cada passo pelas ruas, que nessa hora estavam um pouco mais agitadas do que quando chegou.
Instintivamente, estava sorrindo para as pessoas. Ato de sobrevivência? Simpatia? Seja qual opção for, era involuntário. Preencheu sua comanda e entrou como qual entrasse numa recepção VIP no Automóvel Clube. Disse um olá lascivo para o barman, pegou uma bebida e cada pedaço de seu corpo foi invadido pela música. Sua respiração e seu suor eram música. E percebeu não existir ninguém mais que fosse visível ali, naquele lugar que pouco mais de três horas após aberto estava insuportavelmente lotado.

De como os olhos da moça deixaram de estar embotados...

*
*
*
*
.
..
...
.... fechou os olhos e pulou.