domingo, 29 de julho de 2012

A mulher e sua sombra...

Era uma mulher com uma sombra pequena, que a acompanhava por todos os caminhos. Mesmo percebendo-a deixa que ali ficasse, alimentando-se da solidão de seu silêncio.

Era uma mulher com uma sombra crescente, que de noite rangia os dentes e  chorava baixinho. Que via em suas mãos a marca dos dias passados. Sua pele perdendo o viço da mocidade.

Era uma mulher com uma sombra, que trazia em seus olhos de rubi a cor da bagagem esquecida, dos amigos que amava e já não encontrava.

Era uma mulher sombra, que os sapatos apertados dificultavam a ida. E para onde ir?

Era uma sombra com sua mulher, que fez-se forte com o pesar galopante.

Era uma sombra que fez-se tudo.


(inspirado nos poemas "O homem e sua sombra" de Affonso Romano de Sant'Anna)

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Fora do tempo...

Penso que estou fora do meu tempo. Fora do tempo.

Tenho em mim uma urgência de ontem, urgência dos que têm fome.

Tenho gritado por trânsito livre, comidas expressas, poemas estilo haikai, refrigerantes em latas pequenas, mini chiclete, cigarros em rápidas baforadas, internet rápida e respostas precisas.

Penso que hoje minha urgência é de ontem. Amores perdidos, dias pesados, livros guardados.

Penso que estou fora do meu tempo. Fora do tempo. 

São dias de noites curtas, poucos sonhos e uma saudade abismal.

Olho para esse céu azul e lembro de algo que li e também ficou perdido, juntamente com minha bagagem. Esse céu azul deve ser o mar, numa imensidão que devora todos. Hipnotiza e nos deixa órfãos.

Penso que estou fora do meu tempo. Fora do tempo. E quando o encontrar não mais terei a urgência dos que têm fome, terei a paz dos que andam descalços nas gramas.




terça-feira, 24 de julho de 2012

Leve ...

Se eu fosse poeta, numa hora torta como essa, eu teria licença para dormir e não sonhar. Teria o perdão por descansar horas a fio, e não teria nenhum sentimento de culpa. 

Ah, se eu fosse poeta...

...conseguiria articular as palavras para tecer em frases curtas e simples tudo o que borbulha. Não transformaria meus pensamentos e desejos em uma colcha em fiapos, e sim de retalhos bem costurados. Um cinza, outro laranja, um cinza, outro laranja.

Mais que ser poeta ou ser costureira... queria a leveza que sustenta os dias. A mesma leveza que leva alívio a quem doeu, que pode levar para além do que é aqui.

Mas acabo ficando com o pensamento perdido de um dia pesado.






sábado, 21 de julho de 2012

Dentes-de-leão


Quando virei a esquina e comecei a andar por aquela rua, tinha a certeza de nunca ter estado ali. Não conhecia os prédios, as janelas fechadas das casas não lembravam nada. Nenhuma árvore ou arbusto era familiar. Um lugar novo e sem aquele sentimento de gosto bom nos olhos. Os carros passavam rápido e as pessoas tinham um tom de cinza na pele.

De forma mecânica eu abri a bolsa, peguei um cigarro e continuei andando, sem muita certeza se estava no caminho certo.

Foi quando um pé de vento levantou todas as folhas secas que inundavam o passeio. Senti na mesma hora o cheiro de ontem. Senti aquele perfume bom que existe atrás da orelha da pessoa que se gosta. Minhas pernas fraquejaram, e eu não conseguia decidir se deixava-me ficar ali ou se continuava. Nessa horinha de descuido tudo ganhou uma aparência nova. Bem disse que felicidade se encontra assim.

Sempre gostei da brincadeira que o vento faz quando levanta as roupas, acaricia as peles, bagunça os cabelos e hoje, além de tudo, ele invadiu minha alma. Intruso, conseguiu que tivesse vontade de sentar na grama, ficar descalça e ler um livro antigo, tomar café, e esquecer do tempo, que aliás tem feito-me prisioneira de um modo que não gosto.

Quis ser vento, quis ser suave e inesperada ... e fazer o ontem também sentir um gosto bom. Cantar nas frestas das janelas, espalhar dentes-de-leão no ar para quem ver sentir minutos de bem estar como eu sinto quando isso acontece.

Quis ser vento e ir...