Quando dei por mim já era comparado com os garotos grandes. Não cheguei a apanhar, ter meu lanche roubado ou meus cadernos jogados em poças de lamas. Eu simplesmente passava desapercebido, apesar de ser uma pessoa de estatura alta, ter olhos muito negros e dentes muito claros. Cão, sempre companheiro me seguia. Minha mãe já tinha cabelos de prata, e uma felicidade cantada juntamente com os discos de vinil, na vitrola antiga. O tempo não passava, não existia. Uma roda da fortuna que não virava, simplesmente não rodava. E eu não sabia mais das cores. Tudo me era tão monocromático, até a tarde de terça-feira quando eu e Cão estávamos voltando para casa...
... ele saiu correndo e afastou-se da estrada. Sem entender qual motivo, sem ver nada que chamasse tanto sua atenção, corri atrás. Corremos por uns bons (e exaustos) dez minutos. Então senti o suor quente fazer minha roupa grudar nas costas, meus olhos arderam e não vi, num primeiro momento, o que o fez parar. Meu coração apertou-se como se uma mão muito forte o esmagasse. Lá estava ela. Tão clara, tinha a postura firme, mas os olhos tão melancólicos, e um livro de capa verde entre as mãos. Cão já tomara conta do espaço, sentado ao seu lado, cheirando-a e recebendo tantos carinhos que eu quis ser ele. Percebendo minha presença virou-se e sorriu.Caí de joelhos e senti que morri o correspondente a um mês, e tive a certeza de ser marcado para sempre, como uma tatuagem feita em minha alma. Lembro ainda daqueles pezinhos que lembravam pão, os dedos delicados, o nariz arrebitado, a boca sempre com um sorriso. Aproximou-se de mim um pouco preocupada e quis saber se eu estava bem. Nunca mais estarei, pensei, e só consegui retribuir o sorriso. Desse dia em diante nos víamos sempre.
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