segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Capítulo III - De como aprendi a gostar da beira do rio e outro sucessos que ninguém contaria...

Quando dei por mim já era comparado com os garotos grandes. Não cheguei a apanhar, ter meu lanche roubado ou meus cadernos jogados em poças de lamas. Eu simplesmente passava desapercebido, apesar de ser uma pessoa de estatura alta, ter olhos muito negros e dentes muito claros. Cão, sempre companheiro me seguia. Minha mãe já tinha cabelos de prata, e uma felicidade cantada juntamente com os discos de vinil, na vitrola antiga. O tempo não passava, não existia. Uma roda da fortuna que não virava, simplesmente não rodava. E eu não sabia mais das cores. Tudo me era tão monocromático, até a tarde de terça-feira quando eu e Cão estávamos voltando para casa...
... ele saiu correndo e afastou-se da estrada. Sem entender qual motivo, sem ver nada que chamasse tanto sua atenção, corri atrás. Corremos por uns bons (e exaustos) dez minutos. Então senti o suor quente fazer minha roupa grudar nas costas, meus olhos arderam e não vi, num primeiro momento, o que o fez parar. Meu coração apertou-se como se uma mão muito forte o esmagasse. Lá estava ela. Tão clara, tinha a postura firme, mas os olhos tão melancólicos, e um livro de capa verde entre as mãos. Cão já tomara conta do espaço, sentado ao seu lado, cheirando-a e recebendo tantos carinhos que eu quis ser ele. Percebendo minha presença virou-se e sorriu.Caí de joelhos e senti que morri o correspondente a um mês, e tive a certeza de ser marcado para sempre, como uma tatuagem feita em minha alma. Lembro ainda daqueles pezinhos que lembravam pão, os dedos delicados, o nariz arrebitado, a boca sempre com um sorriso. Aproximou-se de mim um pouco preocupada e quis saber se eu estava bem. Nunca mais estarei, pensei, e só consegui retribuir o sorriso. Desse dia em diante nos víamos sempre.

sábado, 12 de novembro de 2011

Capítulo II - De como as pessoas acreditaram na normalidade e outros sucessos

Aconteceu de nunca mais haver apenas a noite. As 24 horas eram distribuídas perfeitamente conforme as estações do ano. Longos dias no verão, e longas noites no inverno. Aliás, sempre escutava os anciãos da cidade comentando que há muito não era tão nítida cada época. As chuvas que definiam as estações, as folhas que caem ou flores que nascem, numa sincronia que trazia lembranças e lágrimas nas histórias contadas em bancos de praça. Nunca mais ouvi ninguém comentar sobre aquele ano de noite sem estrelas ou lua. Era como se eles não recordassem ou acreditassem. Os animais somente eram assunto quando criavam um número além do esperado, e isso era raro. Nunca mais nasceu nenhum bicho com anomalia. Eu esperava o pior com essa calmaria toda, e mais que tudo, aprendi a não conversar com ninguém antes dos três anos de idade. Ninguém acreditava que eu já soubesse falar, ler e muito menos escrever. Quando algum papel rabiscado era por descuido meu encontrado, minha mãe tratava logo de culpar os moleques da rua. A bizarrice dali era eu. Ao final do terceiro ano de vida ganhei um cachorro e homenageei uma personagem de livro chamando-o de Cão. Ele mostrou-se mais que companheiro, como esperado, mostrou-se aliado fiel e compreensivo, sabendo entender meus segredos e protegendo-os. Apesar de no início incomodar o fato de uma criança tão pequena brincar com um cachorro tão grande, ao final de algumas semanas era comum, e o sossego que minha mãe sentia por não precisar mais se preocupar comigo foi como bálsamo.


domingo, 6 de novembro de 2011

Capítulo I - Relato do dia em que nasci e outros sucessos ...


Quando nasci fez-se noite na cidade. Todos acreditaram que era um eclipse não previsto e apenas minha mãe chorou pela sina que aquela escuridão representava. Eram 13:00 horas. Passou-se um ano de noite triste. Todos os dias eram de um céu sem estrelas, sem lua, e nenhum sinal do sol. Aprendi a andar muito rápido, pois como os animais fui ensinado a sobreviver sozinho. Nunca foi associado ao meu nascimento aquele ano morto, mas não houve nenhuma comemoração também. A igreja apesar das portas sempre abertas viu a fé das senhoras com lenços preto diminuir até o fim. Os homens deixaram-se estar nos bancos da praça, num jogo de damas interminável. Quando as velas acabaram os automóveis foram aposentados, pois usou-se o combustível para as empoeiradas lamparinas, relíquias de bisavós cuidadosas. Ninguém preocupava com os afazeres das casas ou com a lavoura.


Minha primeira palavra, aos 9 meses, não causou espanto: "escuro". Era praticamente o que se ouvia. Ao findar dos 12 meses, exatamente às 13:00 horas notamos o amanhecer. Mas não vimos um dia quente. O sol era morno, de um amarelo apagado. Tudo o que víamos eram plantas pálidas e diminutas. Imperava doenças e miséria pelo vilarejo. A maioria correu para a igreja e encontrou-se um senhor barbudo, fazendo palavras cruzadas, sentado próximo ao altar. Assustado com a volta das carolas o padre tratou de esconder sua revista, e mesmo sem batina propôs que rezassem um terço, pois o milagre da vida deveria ser comemorado. Em silencio tudo assisti, e deixei que pensassem que meus poucos e escuros meses eram insuficientes para que eu entendesse o que acontecia. Mas eu sabia que nunca mais seria como antes.

sábado, 21 de maio de 2011

AmanheceR





Hoje, logo pela manhã, ele entrou pela casa como nunca havia feito antes. Trouxe seus dentes amarelados de Marlboro num sorriso de quem chega sem avisar. Antes mesmo de acordar senti sua presença com o frio do outono, mas por não esperar nada acreditei ser apenas a janela aberta. Ficamos num silêncio sereno por longo tempo. Ele com olhos famintos apreciando eu de camisola surrada e pés descalços. Eu incrédula e sem palavras.


- Aceita um café?

- Para "boca de pito" um forte, como sempre, e como sempre sem açúcar.


Enquanto a água fervia coloquei uma música.


"Can you feel a little love?"


Agora a casa tinha o cheiro que sempre me deixou em transe. Café forte e fumaça de cigarro.


- Quer comer algo?

- Não, não vou demorar (e seus olhos estreitos me diziam completamente o contrário). Somente queria ver como tinha cortado os cabelos. E vejo que não foi nenhuma mudança radical, acho que cheguei cedo.


"Dream on, dream on."


Tomou várias canecas de café e precisei trocar o cinzeiro algumas vezes. Sempre em silêncio. Passaram-se horas antes que ele voltasse a falar:


- Lembra quando disse que seu nome era o nome da amada, para dizer na hora da morte?

Apenas assenti com os olhos.


"It knows its lines

It's well rehearsed".


- Então volto depois, quando o frio estiver perto do fim.


E deixou seu perfume impregnado no sofá. Peguei um pedaço de cobertor antigo e fiquei ali, pelo resto do dia sem entender como o Passado poderia ter um perfume tão doce.

terça-feira, 19 de abril de 2011

Quadro

Para não dizer que eu não falei das flores havia uma planta, no fundo do lote, com pequenos cachos delas, num vermelho alaranjado, num vermelho fogo. Vários pequenos buquês, tão vivos, contrastando com o cinza do tempo grudado no muro. E havia mais, havia todo o azul do céu, com parcas nuvens. E havia mais, mais e mais, o silêncio quebrado em intervalos difusos, pela fumaça. E essa imagem típida de domingo foi pintada em aquarela e lá está, lembrando-me dos pequenos buquês, do muro, das nuvens e fumaças... e de todo amor que há nessa vida!

terça-feira, 29 de março de 2011

Berro d'água



Hoje não posso reclamar do sol. Penso que derreteu (amoleceu???) algo em mim. Foi como há muitos anos, quando estava debaixo de um telhado de zinco, vendo minha avó com sua pele castigada e negra, mascando fumo e entoando cantingas de umbanda....




Quisera saber as respostas para as questões da vida. Na verdade, creio que me bastaria saber as perguntas, porque, sabendo-as, saberia que há respostas a serem buscadas. Sei que é muito fácil ficarmos tristes, ou mesmo passarmos a vida inteira tristes. E que nossa tristeza decorre em sua maior parte de vivermos para os outros, e não para nós mesmos, como seria o certo.




Vivermos para os outros em todos os sentidos; desde a roupa que usamos porque nos disseram que devíamos usar, ou o livro que escrevemos para que nos achem mais sábios, até o trabalho que toleramos (engolimos), para agradar a todas as aparências sociais. Um dia ainda coloco um nariz de palhaço só para que todos me digam que não o posso usar, porque, afinal: o que é que os outros pensariam? Onde estão afinal esses “outros” de que tanto nos falam? Que tantas verdades lhes diria, se os encontrasse? Esses outros não existem, mas de tanto ouvirmos falar deles acabaram por existir em nós mesmos. Em todos nós. Não ponho um nariz de palhaço porque eu não poderia coexistir com a idéia que eu faço de mim mesma.




Mas é tão fácil também sermos felizes que nem acreditamos. O que realmente queremos, e não o que querem por nós desde que nascemos, não podemos comprar ou conquistar porque já nos foi dado de graça, sem que o pedíssemos. Falam em caminhos ruins e sem volta. Todos os caminhos são sem volta. O que chamamos volta já é, em verdade, um novo caminho. De forma que só vale pensar no caminho a percorrer: que possa ser o melhor possível. Não vou repetir aqui as incontáveis lamúrias que tantas vezes disse sobre emprego e sobre ser filha, até porque quero já quero pensar o mundo a partir de mim mesma. E quero ter um inquebrantável otimismo em relação ao destino humano




Temos todos uma vocação inata a Quincas, resta-nos apenas descobrir nosso próprio berro d’água.




Exausta

... desde ontem essa mulher invade meus pensamentos. Com sua delicadeza e simplicidade de escrever exatamento o que estou sentindo. Quando será que foi isso?


Dormir.


Descansar horas a fio.


Muito mais que raízes.


O vento que entra pela janela é quente. E não consigo dominar o desejo de ficar aqui até quando o sol morno entrar pelo quarto e ainda continuar, e continuar... somente com o leve trabalho de rolar na cama, ou nem isso. Ficar com meu livro estilo "seção da tarde" .

"Eu quero uma licença de dormir,

perdão para descansar horas a fio,

sem ao menos sonhar

a leve palha de um pequno sonho.

Quero o que antes da vida

foi o sono profundo das espécies,

a graça de um estado.

Semente.

Muito mais que raízes." *





E por mais contraditório, ficar assim me deixa leve, num estado de livre e feliz, contudo os pensamentos continuam efémeros ... e todo o ninho de frases de ontem hoje são farelos no chão. E nada mais está em minhas lembranças senão as frases dessa mulher... sua imagem com cabelos cor de prata, um sorriso tímido... e continuo completamento absurda.


(*) Adélia Prado - Bagagem

terça-feira, 8 de março de 2011

... a janela do outro lado!


O cotidiano é confortável... era pelo menos. Todos os dias eu via as fumacinhas pela pequena janela. Sabia que ela estaria lá. Ok, talvez nem todos os dias... mas no horário do almoço era visível... esperando perto da escadaria, com os cabelos sempre desarrumados, tênis, e uma expressão de "tanto faz como tanto fez". Adoro.
Então veio esse feriado prolongado. Nada... de minha janela só vejo gotas e mais gotas de chuva. Nenhum fumaça (nunca era fogo mesmo). Imagino que em qualquer outro lugar da cidade - ela não é do tipo que enfrentaria música ruim, pessoas estranhas, e horas de estrada - lá estará. Talvez com os cabelos presos, evitando o shampoo... talvez não. E eu fiquei aqui a imaginando voando pelas janelas... enfumaçadamente. Creio que durante todos esses longos dias ela esteve com um livro debaixo dos braços, lendo entre lençóis e cafés, ouvindo música e deixando-se ficar . Tanto faz como tanto fez. E eu comi esperança do almoço, todos os dias.